Susana Feitor: “É preciso cativar os atletas no final de carreira. Os atletas são diamantes em bruto”
“Vê se não ficas em último”, disse o treinador no primeiro Campeonato a Susana Feitor que era a mais nova. Surpreendeu no pódio. Já não havia “marcha atrás”. Assim nasceu a grande marchadora olímpica.
Susana Feitor é sinónimo de marcha. Como é que isso aconteceu?
Sempre fiz atividades desportivas. Desde pequena que me recordo de jogar à bola com os meus colegas, durante os recreios. Entre outras modalidades, sobretudo competitivas. Nunca gostei de perder. Tenho esta memória.
Quando a Câmara Municipal de Rio Maior instituiu que todas as escolas do concelho, em regime de telescola (na qual estava incluída, no 5º e 6º ano), deveriam ter aulas de atividade física, o monitor desafiou-me para o atletismo. Na altura, o monitor destas aulas na telescola era também treinador de atletismo e atento aos alunos com maior aptidão ou gosto para a corrida.
Aos 11, 12 anos, eu gostava muito de correr, mas não equacionava ainda a marcha. Acontece que a Associação de Atletismo de Santarém precisava de uma marchadora e eu acabei por destacar-me nos testes que o treinador fez. Experimentei então o Campeonato Distrital e correu bem. A partir daí, comecei a fazer marcha e a correr. Eu estava a tentar fazer mínimos para uma prova de 1500 de corrida juvenis (embora pertencesse à categoria de infantis), mas não estava a conseguir. O treinador lançou-me mais um desafio: e por que não a marcha? E correu bem.
Como passei a ser marchadora? Em 88, tinha eu 13 anos, consegui fazer mínimos para o Campeonato Nacional de Juniores (atenção, ainda era infantil!). E foi no Campeonato Nacional que tudo aconteceu.
O Campeonato era no Porto – e eu nunca tinha ido ao Porto. Achei fascinante poder conhecer o Porto pela primeira vez. Mas para isso, precisava de arranjar maneira de frequentar os treinos em Rio Maior, após a escola. Não havia transporte da escola para Rio Maior mas descobri uma empresa de pedreiras que fazia este percurso. E durante uns tempos, andei à boleia dos camionistas para ir treinar.
No Porto, recordo-me de o treinador me dizer: “Susana, são 5 km. Vê lá se não ficas em último…”. Está bem, senhor Jorge, vou tentar. Eu tinha 13 anos, estava a competir com miúdas de 18 e 19 anos. E quando dei por mim, cortei a meta em 3º lugar. Foi uma surpresa. Passei a ser marchadora. No ano seguinte, fiz os mínimos para o Campeonato de Europa de Juniores. E já não havia “marcha atrás”. (risos)
Tens cinco presenças em Jogos Olímpicos consecutivos (a segunda melhor sequência de um desportista luso). Quais as grandes diferenças entre a Susana Feitor dos 1º JO e da tua última participação olímpica?
Eu costumo dizer que fui a 5 + 1. Ainda fui a Londres, em 2012, como suplente.
As grandes diferenças estão sem dúvida em mim. Mas os JO também são muito diferentes. Barcelona foi, para mim, muito bem organizado – dos melhores JO em que participei, enquadrando na época, em que ainda havia apenas intranet. Se pensarmos na grandeza de Barcelona, então Pequim foi enorme. Queria muito terminar bem a minha carreira. Queria muito trazer um resultado que já tinha conseguido nos Mundiais e nos Europeus e que não estava a conseguir nos JO. E talvez a pressão que coloquei em cima dos meus ombros foi tão grande que não tenha vivido os Jogos em pleno. Pequim tinha uma aldeia muito bonita, com um ambiente muito zen. E em termos competitivos, igualmente grandioso. No dia da minha prova, houve uma tempestade, e acabou por ser um fator stressante que contribui para o meu colapso aos 11, 13 km. Caí para o chão, tive um momento duro. Nos primeiros JO fui desclassificada em termos competitivos, no último não cheguei ao fim por um motivo diferente. Foram dois JO com o pior e o melhor de mim.
Mas a verdade é que os JO têm um significado enorme para mim. É estranho mas parece que me senti “pequena” face a tamanha grandeza.
Um momento que tenha marcado a tua carreira olímpica de forma especial?
Não me recordo de um momento especial maior que outro. Tenho vários e sempre relacionados com o ritual, com as cerimónias, com a imagem de estarmos equipados numa missão. Logo em 92, eu tinha apenas 17 anos, foram uns JO especiais. Uma coisa é termos a noção do que são uns JO através da comunicação social ou do que os colegas contam, outra coisa é viver na pele. E a expetativa que temos versus o que vivemos é totalmente diferente.
Sinto que, o que me faltou nos Jogos foi o “resultadão”. Algo que conquistei em Mundiais (Susana esteve em 11 Mundiais) e em Campeonatos da Europa. Mas não foi por não ter alcançado um lugar nos Top 8 que os JO se tornaram menos especiais. A vivência na aldeia olímpica e o facto de integrarmos um missão pelo nosso país são momentos marcantes.
O teu currículo é vasto – enquanto atleta, mas também como dirigente e treinadora. O que é mais desafiante na carreira de dirigente e treinadora?
Trabalhar com pessoas é em si desafiante. O nosso sucesso é também o sucesso dos outros e sem o sucesso dos outros, nós também não temos sucesso. O nosso contributo tem essa responsabilidade: gerir, cuidar e tentar que alguém consiga otimizar as suas capacidades o melhor possível, de forma a alcançar os resultados.
Entre dirigente e treinadora, a diferença está essencialmente relacionada com o conhecimento (do corpo humano, fisiologia). Porque a base é idêntica.
Ser treinador é ser um gestor de emoções, de fisiologia, da experiência. E um dirigente é um gestor de outras componentes. Talvez seja mais difícil ser treinador do que gestor, mas não deixa de ser muito difícil ser gestor quando este não está no cargo pelas razões corretas. Um gestor de desporto é um gestor especial e tem que utilizar técnicas de gestão misturadas com o saber e a experiência do desporto para atingir os fins. Não pode estar onde está por motivos secundários.
És licenciada em Gestão das Organizações Desportivas. Porque os atletas, retomando um artigo teu na Tribuna Expresso – não sabem apenas treinar…?
Claro que não! Os atletas têm muito mais para dar, além do treino. Mesmo aqueles que acham que não e que chegam ao fim da sua carreira com uma espécie de perda de identidade. Mas todos os atletas sabem fazer muito mais do que treinar. É preciso fazer um caminho de descoberta e identificar as capacidades que são muito importantes em outras áreas da nossa vida. O ser humano tem a capacidade de adaptar-se. E no que respeita aos atletas, essa valência de adaptação é muito trabalhada ao longo da vida, porque têm que ajustar-se a diferentes treinos, circunstâncias.
Os atletas são diamantes em bruto. Têm é que descobrir-se para, após o fim de carreira, transitarem para áreas que lhes deem prazer e na qual possam colocar a sua paixão. É importante lembrar que, cada vez mais, as empresas procuram colaboradores fora da área técnica. Além das competências inerentes à tarefa, as empresas procuram pessoas com competências que são desenvolvidas pelos atletas. E é essa a maior riqueza que qualquer atleta pode oferecer: trabalhar em equipa, sob stress, trabalhar por objetivos. Estas soft skills que o atleta trabalha ao longo da sua carreira – disciplina, organização na rotina – são fundamentais no mercado de trabalho.
Susana, na tua carreira de treinadora, por exemplo, ao serviço da Federação Norueguesa de Atletismo, fala-nos da tua opinião sobre o impacto que tem a nutrição/suplementação na performance desportiva. Ainda há tabus ou é consensual que os atletas necessitam de uma dieta específica para acompanhar o seu desempenho?
Importantíssimo. Não há aqui qualquer tipo de tabu. Creio que, para a população em geral, está bastante enraizada a ideia de fazer uma dieta saudável, recorrendo, quando necessário, à suplementação. Mas no caso de atletas de alto rendimento, não há dúvidas: para potenciar determinadas capacidades e performance, é necessário fazer suplementação.
Na minha carreira de atleta, contei com o apoio da GoldNutrition, o que foi extremamente importante. Não só porque conheci melhor o meu corpo fisiologicamente, mas também porque recorri aos suplementos indicados para otimizar a minha atividade no treino.
O conhecimento que, depois desenvolvi enquanto treinadora, veio complementar o que já sabia como atleta. Conciliar uma dieta, altamente individualizada, com suplementação, igualmente ajustada a cada atleta, é essencial para treinar melhor. E não só. É essencial para recuperar melhor. Recuperar é tão importante quanto treinar.
O que é que (ainda) falta para melhorar o desporto de alto rendimento nacional?
Esta questão é a mais difícil de responder. Em termos de legislação, diria que falta fazer muito pouco para o Alto Rendimento. Destacaria a necessidade de regulamentar o apoio aos atletas de alto rendimento, relativamente às especificidades geridas pelas federações. Ou seja, dois atletas de alto rendimento (não estou a referir-me aos olímpicos) de duas federações distintas podem ter apoios diferentes. Porque os modelos de gestão das federações são distintos. E, na minha perspetiva, isto não é justo.
O Estado deveria intervir. As Federações, à exceção da federação de futebol, são financiadas pelo Estado. E gerem o seu orçamento em função das suas prioridades. Mas muitas não dão a prioridade que deveriam dar aos atletas e aos treinadores, sabendo, ainda assim, que dependem do número de praticantes e dos resultados atingidos. Era necessário regulamentar estes apoios – a décalage entre o atleta de elite o atleta no nível imediatamente abaixo é demasiado grande. Quem está à beira de entrar no projeto olímpico, e não tem forma de contar com patrocinadores, como é que vai conseguir treinar? Como vai conseguir reduzir o horário de trabalho para poder dedicar-se e subir ao nível de elite?
Era necessário regulamentar este apoio e estende-lo aos treinadores. É necessário haver regulamentação específica sobre este apoio.
Outros apoios: na minha opinião, falta uma relação mais próxima entre o Comité Olímpico das Federações com os atletas, no âmbito do acompanhamento das carreiras. Os atletas têm geralmente os seus apoios, mas não há um follow up (não se questiona se o atleta tem um emprego que está a conseguir conciliar ou não com o treino, etc!). O Estado investe no atleta e pede resultados. Mas pouco mais interfere. O Estado deveria ter uma forma de acompanhar o atleta, para que ele tenha a possibilidade de otimizar os recursos ao dispor. É o que acontece em muitos países.
No Canadá, por exemplo, o Game Plan consiste numa equipa de pessoas contratadas especificamente para acompanhar os atletas e desbloquear situações, quando necessário. Desta forma, os atletas não se sentem sozinhos. Em Portugal, muitos atletas deixam de estar ligados ao desporto quando terminam as suas carreiras. Porque viveram momentos angustiantes, sem acompanhamento.
Apoios pós-carreira: neste momento, está regulamentado um apoio mediante o nível de escalão quando se termina a carreira e que proporciona situações injustas. Um exemplo: Atleta X foi campeão olímpico, atleta Y ainda não ganhou nenhuma medalha olímpica. Se ambos acabarem a sua carreira com uma prova, na qual ficam no top 8, mas sem medalhas, o apoio para a transição de carreira vai ser igual para ambos os atletas porque ambos terminaram no mesmo nível. Mas um tem melhores resultados. Se querem diferenciar os apoios pelos resultados, têm que pesar também os resultados atingidos ao longo da carreira.
Outra questão: é também necessário cativar os atletas que terminam a sua carreira. É necessário motivá-los para que possam utilizar a sua experiência no futuro, nomeadamente junto dos mais jovens. É fácil. Basta terem papéis de role model enquanto ainda estão no ativo, tutores/mentores dos mais jovens. Esta situação acontece com pouca frequência. A Comissão dos Atletas Olímpicos tem desenvolvido algumas iniciativas como o Athlete Speakers (em parceria com a Academia da Carla Rocha), que ajuda os atletas a falarem em público e a passarem a sua mensagem.
Há ainda um outro projeto, que passa por atletas mais velhos serem mentores de atletas mais jovens – isto pode ajudar a encurtar a margem de erro dos mais novos.
Eu considero que o sistema desportivo em Portugal tem poucos conhecedores da realidade do dia a dia e do alto rendimento em Portugal. É feito de pessoas novas ou que não vieram do terreno e que têm que percorrer um caminho até estarem aptos para tomar decisões na área. Enquanto que há atletas que se enquadram em lugares de decisão por terem uma sensibilidade, adquirida com a experiência.
Fala-nos dos projetos da Susana Feitor!
Licenciei-me em gestão de organizações desportivas com o objetivo de abraçar um projeto/ oportunidade na área. A minha colaboração na comissão de atletas olímpicos foi muito importante na minha vida e eu senti que gostaria de desenvolver esta vertente: continuar a ajudar os atletas a encontrarem respostas para as suas necessidades e, quiçá, colaborar com uma organização.
Atualmente, estou a trabalhar em algo que sempre quis fazer: treino. Tirei o curso de treinadora, fui treinadora da Federação da Noruega, da atleta que foi 4º lugar no Campeonato da Europa 50 km marcha. Neste momento, colaboro com o grupo desportivo das Pedreiras e sou treinadora da Inês Mendes e da Mara Ribeiro.
Estou ainda a terminar o curso de Personal Trainer, para ajudar pessoas a melhorarem a sua qualidade de vida através do exercício. Gostaria muito de trabalhar com populações especiais.
Queres conhecer mais “diamantes em bruto”? Histórias e percursos de grandes atletas como o da Susana Feitor no blog da GoldNutrition!